9.1.07

DEUS E O DIABO NA ENCRUZILHADA



ERIC CLAPTON - Me and Mr. Johnson (2004)
Eric Clapton foi considerado no início de sua carreira em 1966 um deus da guitarra e nos muros londrinos se encontrava a pichação ‘Clapton is God’. Enquanto isso, o guitarrista se entregava ao fascínio da música de um negro do Mississippi, que segundo uma famosa lenda, havia vendido sua alma ao diabo numa encruzilhada para se tornar o melhor blueseiro de todos os tempos. Esse homem, que hoje é considerado o rei do blues do delta do Mississipi, chamava-se Robert Johnson.
A admiração pelo blueseiro lendário gerou várias homenagens de vários artistas posteriores, como os Rolling Stones, Led Zeppelin e do próprio Clapton que, ao longo de sua carreira, realizou algumas versões para músicas de Johnson. Em 2004, passado 38 anos desde a primeira gravação do mítico bluseiro feita por Clapton, ele lançou o álbum Me and Mr. Johnson, em que presta uma homenagem em 14 faixas, das 29 que Johnson gravou na sua curta carreira, pois faleceu envenenado aos 27 anos. Em coletiva para divulgar o lançamento Clapton desabafou: "Sua música é como um ponto referencial a me orientar, toda vez que me sinto sem rumo. É a melhor música que eu já ouvi. Eu sempre confiei em sua pureza, e eu sempre confiarei”.
Me and Mr. Johnson foi produzido por Clapton e por Simon Climie. Nele, o guitarrista passou as músicas originalmente em voz e violão para versões com banda, acompanhado de músicos que há vários anos participam de seus projetos. Com o intuito de captar a essência vital das canções, Clapton optou por gravar ao vivo no estúdio. Isso gerou um alto astral nas músicas que é perceptivel ao longo da audição.
De todas as músicas selecionadas, Kind Hearted Woman já recebera registro em disco através da compilação Crossroads 2 – Live in the Seventies. Agora com andamento mais lento, ela revela o mesmo sabor da parceria que Clapton fez com B.B. King – outra grande influência no estilo de Clapton – que gerou o álbum Rinding with the King, de 2000.
When you got a good friend apresenta uma singela referência à amizade por admiração que Clapton cultiva por Johnson ao longo de sua carreira. “Agora, depois destes anos todos, a música dele está, afinal de contas como minha mais velha amiga, sempre na parte de trás de minha cabeça, e no horizonte”, declarou abertamente o guitarrista. The’re is red hot lembra muito o bluegrass de cabaré, graças ao piano boogie de Chris Stainton. Esse clima honk tonk permite que os músicos - Doyle Bramhall II na guitarra-slide; Billy Preston no órgão; Jerry Portnoy na gaita, além do já citado Stainton no piano - se rendam a solos inspirados. Clapton os incita em praticamente todo o disco para suas improvisações, enquanto o baixista Nathan East e o baterista Steve Gadd seguram as levadas numa cozinha precisa e cadenciada. Me and the Devil, If a had possession over judgement day e Love in vain tem o mesmo clima das músicas do elogiado From the Craddle (1994), considerado como uma retomada de Clapton ao seu velho estilo depois de alguns álbuns irregulares, capitaneados pelo irritante hitmaker Phil Collins.
O slideguitar do jovem Doyle Bramhall II acompanha o guitarrista inglês em Travelling riverside blues, como um passeio de barco pelas margens do Mississippi enquanto a batida de pé do original de Stop breaking down ganha peso com levada de todos os instrumentos em uníssono. Já em Little Queen of spades, Clapton prova porque recebeu o apelido de Slowhand, ou seja, o ‘mão lenta’ pela maneira que ataca a guitarra. Hell hound on my trail, fecha Me and Mr. Johnson com a mesma força do inicio da carreira de Clapton, mostrando que Deus abdicou do seu posto, mas não perdeu todo o seu poder.
O disco é uma amostra do poder que o blues exerceu sobre uma geração de artistas no início do Rock and Roll, e é um atestado do poder de fogo que três acordes em doze compassos podem fazer com os sentimentos humanos.